Thiago Aresta*
Era uma quarta-feira como outra
qualquer. Aliás, era um dia como outro qualquer, desses dias padrão, no qual
tudo se desenrola da mesma forma e ao qual se convencionou chamar quarta-feira
por pura e simples questão de ordem, sucessão de tempo, burocracia. Pura
burocracia. Burocráticos são meus dias, burocrático é meu trabalho, burocrática
é minha rotina. Por falar em trabalho, o horário de saída do meu é às dezenove
horas em ponto, horário esse que cumpro rigorosamente. E o trajeto
trabalho-casa também é simples: pegar um ônibus do Gragoatá ao Terminal João
Goulart e, dali, outro coletivo para a minha querida e amada São Gonçalo, da
qual sou filho orgulhoso. Só que às vezes, bem raramente, acontecem coisas que
podem ser alçadas ao patamar de redenção.
Nesse dia, em especial, ao chegar
à praça do Gragoatá, já se fez por anunciar a odisseia que seria o percurso até
a casa: o trânsito simplesmente parado, estático, estacionado... E, numa boa,
se fosse pra ficar preso num lugar só por conta do ar condicionado, o lugar
escolhido teria sido a minha sala e não o famigerado quarenta e sete normal,
aquele que passa pela praia de Icaraí. Estava com um grande amigo, o Rafa, que
tem em comum comigo, além da relação de quase irmão, duas paixões: a cerveja e
o Flamengo... Então, não é difícil saber a atitude a ser tomada numa situação
dessas. Um olhou para o outro e o comum acordo foi selado quase que em
silêncio: vamos parar num bar desses aqui, jogar conversa fora e esperar o
congestionamento se dissipar, molhando a palavra. É o refrigério da alma, meus
amigos, quem não gosta que me perdoe. E quem gosta, conte comigo! Sábia
decisão.
Decisão tomada, mesa escolhida,
objetivo traçado: uma torre de chope. E lá veio ela: dois litros do mais puro líquido
dourado estupidamente gelado, néctar e manjar dos deuses, que, em forma de
torre, toma a direção do céu assim como a ele se elevam todos os nossos
anseios, como um totem, um lugar de devoção, cujo maior louvor é o sacrifício
de ser bebido. E assim fomos à torre, não com a volúpia destrutiva de um
fundamentalista que quer dar uma lição ao mundo, mas com a devoção, a gratidão
e a gravidade de quem recebe dos céus um presente sagrado do deus de sua
crença.
Papo vai, papo vem, reclama-se da
vida, fala-se de trabalho, fala-se do acúmulo de responsabilidade que se tem
quando finalmente se dá conta que se é adulto, já perto dos trinta, que
absurdo! Fala-se até da vontade de ser criança eternamente, mas acorda-se que o
importante é manter a juventude da alma. Fala-se mal dos outros também, afinal
isso é natural do homem, independente de gênero. É pecado? Mas o que seria das
religiões se não houvesse o temor dos pecadores, correto? Em todo caso, peço
perdão. Mas há outra coisa que é religioso das quartas-feiras e que, não fosse
a grande televisão ligada, nos passaria despercebido: futebol, campeonato
brasileiro, pra ser mais exato. E a transmissão era feita ao vivo do Recife
(que saudade), do estádio dos Aflitos, campo do Náutico.
Aflito eu deveria estar, pois meu
momento futebolístico não é dos melhores. Meu time não vai bem das pernas, já
está a algumas rodadas sem vencer, somando poucos pontos. Muitos dirão que vive
uma crise, mas desde que me entendo por flamenguista, há crise, seja de ordem
política, administrativa ou futebolística pairando sobre a Gávea. E quando não
há, fazem questão de criar. Então, grosso modo, “crise” seria o estado natural
das coisas no rubro-negro, com algumas pancadas de títulos. Muitas, em
verdade... É a tal da Flapress, né, que sacou o óbvio: quando o Flamengo vai
bem, vende jornal; quando vai mal, vende mais ainda... Proponho um desafio,
acho que seria interessante: que a imprensa deixasse de cobrir o Flamengo por
um mês; que, por um mês, o Flamengo se manifestasse somente por seus veículos
oficiais e, findo esse mês, veríamos, Flamengo e imprensa, quem é mesmo que
precisa de quem. De acordo?
Mas chega de divagação, afinal de
contas, o Flamengo não entraria em campo nessa quarta, entraria? Estamos aqui
pra beber ou pra falar de futebol? Os dois, na verdade, mas deixa pra lá...
Quase levo um susto quando o garçom, gente finíssima, muda a tevê de canal e,
em outro campo de outra cidade, aparecem dois times diferentes maltratando a
gorduchinha: um, com a camisa branca e uma faixa diagonal em preto, lembrava
mais uma campanha pela conscientização do uso do cinto de segurança em
automóveis. O outro, de camisa com listras horizontais em preto e vermelho, lembrava,
fugaz e assustadoramente, o rubro-negro de minha devoção. Só que, passado o susto,
eu me lembrei de que o Flamengo não jogaria nessa quarta, jogaria?
Futebol tem um poder hipnótico
muito grande, então, rendi-me à tevê e passei a prestar atenção ao certame. Com
muito custo, consegui identificar o time do “cinto de segurança”: era a Ponte
Preta, a macaca, que, à sua maneira, vem fazendo um campeonato brasileiro acima
das expectativas, principalmente fora de seus domínios. Digo “à sua maneira”,
pois, os ponte-pretanos que me desculpem, a macaca entra no Brasileirão é
lutando pra não cair, né? Uma vaguinha na sul-americana é quase título.
Diferente de um Flamengo, por exemplo, que sempre briga pelo título, vaga na
Libertadores é prêmio de consolação... Juro que tentei identificar a equipe de
preto e vermelho, mas o máximo que consegui foi associá-lo a um Atlético
Goianiense piorado, sofrível. E a Ponte corroborou com isso quando, em exatos
doze segundos e poucos toques na bola, invadiu a área do adversário como quis e
guardou seu primeiro gol na partida. Todos no bar disseram que quem levou
aquele gol foi o Flamengo. De fato, a zaga parecia a do Flamengo, mas eu me
recuso a acreditar que aquela massa heterogênea e inerte seja o time do meu
coração...
Fim do primeiro tempo, fim da
primeira torre. O engarrafamento persistia. Então, o que fazer a não ser pedir
logo outro totem de dois litros e ver o que se sucederia no trânsito, no
gramado, na vida? A torre chegou com o apito do árbitro e, copo após copo,
seguimos acompanhando o suplício de futebol que se nos apresentava. E as
pessoas insistindo que o preto-e-vermelho era o Flamengo. Eu teimo que não era!
Eu conheço meu time! Quando que o Flamengo, jogando em casa, vai ser um time
tão inerte e passivo assim? Insignificante, irrisório? Mas nunca! O Flamengo
não tem nada de burocrático, pelo contrário: o Flamengo transcende... Quando
que o Mengão, apoiado por sua magnética que lota jogo após jogo, independente
da situação do time, vai permitir que o adversário detenha o controle das
ações? Nunquinha da Silva! E assim, em meio a conversa e copos, seguiu-se o
martírio daquele time que, nervoso e desorganizado, não conseguia inverter o
rumo dos acontecimentos. Quase gol do rubro-negro, defesaça do goleiro
adversário. A bola teimava em não entrar ou os transeuntes é que não lhe
ensinavam o caminho correto a fazer? E assim, sem graça, o juiz decretou o fim
do jogo. A Ponte acabou por ganhar de um desfigurado time que parece estar
passando por uma crise de identidade e das brabas! Só que minha certeza era
inabalável: o Flamengo que eu conheço insiste, persiste e não desiste, tem raça
fibra e dedicação. Pode não conseguir, mas luta até o fim. E, quando não
consegue pelos jogadores, o Manto joga sozinho! Ufa! Para meu alívio, aquele,
com certeza, não era o Flamengo, ai da Nação ver um Flamengo tão inofensivo
assim...
Fim do jogo, fim da torre, fim do
engarrafamento. O momento de redenção daquela quarta-feira colocou a vida nos
eixos e as coisas seguiam o seu rumo natural. Levanta a mão, chama o garçom
gente fina, vamos pedir a conta, tá na hora de caçar o caminho de casa! Mas,
antes de ir embora, foi quase que inevitável me aproveitar da gentileza do garçom
e fazer a pergunta que, creio eu, todos os rubro-negros estão se fazendo nesse
momento:
- O Flamengo joga quando mesmo?
SRN
* Thiago Aresta está um bocado emotivo nos últimos dias, motivo: Sharapova no US Open.