domingo, 9 de setembro de 2012

Duas torres e a conta




Thiago Aresta*


Era uma quarta-feira como outra qualquer. Aliás, era um dia como outro qualquer, desses dias padrão, no qual tudo se desenrola da mesma forma e ao qual se convencionou chamar quarta-feira por pura e simples questão de ordem, sucessão de tempo, burocracia. Pura burocracia. Burocráticos são meus dias, burocrático é meu trabalho, burocrática é minha rotina. Por falar em trabalho, o horário de saída do meu é às dezenove horas em ponto, horário esse que cumpro rigorosamente. E o trajeto trabalho-casa também é simples: pegar um ônibus do Gragoatá ao Terminal João Goulart e, dali, outro coletivo para a minha querida e amada São Gonçalo, da qual sou filho orgulhoso. Só que às vezes, bem raramente, acontecem coisas que podem ser alçadas ao patamar de redenção.
Nesse dia, em especial, ao chegar à praça do Gragoatá, já se fez por anunciar a odisseia que seria o percurso até a casa: o trânsito simplesmente parado, estático, estacionado... E, numa boa, se fosse pra ficar preso num lugar só por conta do ar condicionado, o lugar escolhido teria sido a minha sala e não o famigerado quarenta e sete normal, aquele que passa pela praia de Icaraí. Estava com um grande amigo, o Rafa, que tem em comum comigo, além da relação de quase irmão, duas paixões: a cerveja e o Flamengo... Então, não é difícil saber a atitude a ser tomada numa situação dessas. Um olhou para o outro e o comum acordo foi selado quase que em silêncio: vamos parar num bar desses aqui, jogar conversa fora e esperar o congestionamento se dissipar, molhando a palavra. É o refrigério da alma, meus amigos, quem não gosta que me perdoe. E quem gosta, conte comigo! Sábia decisão.
Decisão tomada, mesa escolhida, objetivo traçado: uma torre de chope. E lá veio ela: dois litros do mais puro líquido dourado estupidamente gelado, néctar e manjar dos deuses, que, em forma de torre, toma a direção do céu assim como a ele se elevam todos os nossos anseios, como um totem, um lugar de devoção, cujo maior louvor é o sacrifício de ser bebido. E assim fomos à torre, não com a volúpia destrutiva de um fundamentalista que quer dar uma lição ao mundo, mas com a devoção, a gratidão e a gravidade de quem recebe dos céus um presente sagrado do deus de sua crença.
Papo vai, papo vem, reclama-se da vida, fala-se de trabalho, fala-se do acúmulo de responsabilidade que se tem quando finalmente se dá conta que se é adulto, já perto dos trinta, que absurdo! Fala-se até da vontade de ser criança eternamente, mas acorda-se que o importante é manter a juventude da alma. Fala-se mal dos outros também, afinal isso é natural do homem, independente de gênero. É pecado? Mas o que seria das religiões se não houvesse o temor dos pecadores, correto? Em todo caso, peço perdão. Mas há outra coisa que é religioso das quartas-feiras e que, não fosse a grande televisão ligada, nos passaria despercebido: futebol, campeonato brasileiro, pra ser mais exato. E a transmissão era feita ao vivo do Recife (que saudade), do estádio dos Aflitos, campo do Náutico.
Aflito eu deveria estar, pois meu momento futebolístico não é dos melhores. Meu time não vai bem das pernas, já está a algumas rodadas sem vencer, somando poucos pontos. Muitos dirão que vive uma crise, mas desde que me entendo por flamenguista, há crise, seja de ordem política, administrativa ou futebolística pairando sobre a Gávea. E quando não há, fazem questão de criar. Então, grosso modo, “crise” seria o estado natural das coisas no rubro-negro, com algumas pancadas de títulos. Muitas, em verdade... É a tal da Flapress, né, que sacou o óbvio: quando o Flamengo vai bem, vende jornal; quando vai mal, vende mais ainda... Proponho um desafio, acho que seria interessante: que a imprensa deixasse de cobrir o Flamengo por um mês; que, por um mês, o Flamengo se manifestasse somente por seus veículos oficiais e, findo esse mês, veríamos, Flamengo e imprensa, quem é mesmo que precisa de quem. De acordo?
Mas chega de divagação, afinal de contas, o Flamengo não entraria em campo nessa quarta, entraria? Estamos aqui pra beber ou pra falar de futebol? Os dois, na verdade, mas deixa pra lá... Quase levo um susto quando o garçom, gente finíssima, muda a tevê de canal e, em outro campo de outra cidade, aparecem dois times diferentes maltratando a gorduchinha: um, com a camisa branca e uma faixa diagonal em preto, lembrava mais uma campanha pela conscientização do uso do cinto de segurança em automóveis. O outro, de camisa com listras horizontais em preto e vermelho, lembrava, fugaz e assustadoramente, o rubro-negro de minha devoção. Só que, passado o susto, eu me lembrei de que o Flamengo não jogaria nessa quarta, jogaria?
Futebol tem um poder hipnótico muito grande, então, rendi-me à tevê e passei a prestar atenção ao certame. Com muito custo, consegui identificar o time do “cinto de segurança”: era a Ponte Preta, a macaca, que, à sua maneira, vem fazendo um campeonato brasileiro acima das expectativas, principalmente fora de seus domínios. Digo “à sua maneira”, pois, os ponte-pretanos que me desculpem, a macaca entra no Brasileirão é lutando pra não cair, né? Uma vaguinha na sul-americana é quase título. Diferente de um Flamengo, por exemplo, que sempre briga pelo título, vaga na Libertadores é prêmio de consolação... Juro que tentei identificar a equipe de preto e vermelho, mas o máximo que consegui foi associá-lo a um Atlético Goianiense piorado, sofrível. E a Ponte corroborou com isso quando, em exatos doze segundos e poucos toques na bola, invadiu a área do adversário como quis e guardou seu primeiro gol na partida. Todos no bar disseram que quem levou aquele gol foi o Flamengo. De fato, a zaga parecia a do Flamengo, mas eu me recuso a acreditar que aquela massa heterogênea e inerte seja o time do meu coração...
Fim do primeiro tempo, fim da primeira torre. O engarrafamento persistia. Então, o que fazer a não ser pedir logo outro totem de dois litros e ver o que se sucederia no trânsito, no gramado, na vida? A torre chegou com o apito do árbitro e, copo após copo, seguimos acompanhando o suplício de futebol que se nos apresentava. E as pessoas insistindo que o preto-e-vermelho era o Flamengo. Eu teimo que não era! Eu conheço meu time! Quando que o Flamengo, jogando em casa, vai ser um time tão inerte e passivo assim? Insignificante, irrisório? Mas nunca! O Flamengo não tem nada de burocrático, pelo contrário: o Flamengo transcende... Quando que o Mengão, apoiado por sua magnética que lota jogo após jogo, independente da situação do time, vai permitir que o adversário detenha o controle das ações? Nunquinha da Silva! E assim, em meio a conversa e copos, seguiu-se o martírio daquele time que, nervoso e desorganizado, não conseguia inverter o rumo dos acontecimentos. Quase gol do rubro-negro, defesaça do goleiro adversário. A bola teimava em não entrar ou os transeuntes é que não lhe ensinavam o caminho correto a fazer? E assim, sem graça, o juiz decretou o fim do jogo. A Ponte acabou por ganhar de um desfigurado time que parece estar passando por uma crise de identidade e das brabas! Só que minha certeza era inabalável: o Flamengo que eu conheço insiste, persiste e não desiste, tem raça fibra e dedicação. Pode não conseguir, mas luta até o fim. E, quando não consegue pelos jogadores, o Manto joga sozinho! Ufa! Para meu alívio, aquele, com certeza, não era o Flamengo, ai da Nação ver um Flamengo tão inofensivo assim...
Fim do jogo, fim da torre, fim do engarrafamento. O momento de redenção daquela quarta-feira colocou a vida nos eixos e as coisas seguiam o seu rumo natural. Levanta a mão, chama o garçom gente fina, vamos pedir a conta, tá na hora de caçar o caminho de casa! Mas, antes de ir embora, foi quase que inevitável me aproveitar da gentileza do garçom e fazer a pergunta que, creio eu, todos os rubro-negros estão se fazendo nesse momento:
- O Flamengo joga quando mesmo?
SRN

* Thiago Aresta está um bocado emotivo nos últimos dias, motivo: Sharapova no US Open.

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