sábado, 15 de setembro de 2012

Happy Andy!





Ivan Kano*


Não, eu não vi o início do jogo, comecei a assistir quando Djokovic iniciava a reação a partir do terceiro set. Sim, terminado o quarto set, achei mesmo que eu é que tinha zicado parada, que a derrota era questão de tempo. Desculpem, mas, depois de tanto tempo vendo Andy Murray cumprir sua via crucis em busca de um Slam redentor, confesso que comecei a desenvolver um certo botafoguismo, aquela mistura descabida de sebastianismo e filosofia estoica que transforma a superstição em lei da física, a derrota em sina – em suma, a fatalidade em destino. A meu favor havia dois dados: fazia bem pensar que Andy poderia finalmente vencer na quinta tentativa, tal como Lendl, seu treinador; era muito simbólico que Mori exorcizasse o fantasma na mesma Arthur Ashe onde, quatro anos antes, disputou sua primeira final de Grand Slam, contra o Federer. O ser humano, sabemos, é uma máquina de ver sentido onde não tem e, no fim das contas, pra bom botafoguense, meia crendice basta.
O fato é que resolvi preservar a saúde e não assisti ao início do jogo. Se tivesse sorte, veria o final, um quinto set com dois jogadores se arrastando em quadra, aquele mezzo clássico mezzo clichê do tênis que só não é mais desesperador porque em Nova Iorque vamos, no máximo, até o décimo-terceiro game. Liguei o streaming, dividido entre o desejo improvável de ver o britânico encerrar o drama de uma vez e a certeza de que o sérvio, de alguma maneira, reagiria. Era previsível, afinal. Um pouco pelo que a gente conhece do Murray (tá, bastante, sim), mas muito pelo que já se viu Nole produzir, especialmente quando liga o modo O último dragão branco de jogo: consigo imaginá-lo, de olhos vendados pelo Marian Vajda, treinando aquele maldito forehand na linha que o colocou na final dos dois últimos US Open. Por isso, mais do que ter vencido os dois primeiros sets – indo além do que jamais havia feito em uma final desse nível até então –, e mais até do que ter iniciado o quinto set com uma quebra, foi no sexto game da última parcial que Andy mandou um sonoro hoje não! pro sujeito postado do outro lado da rede. Liderando por 3/2 e saque, mas pressionado por ter perdido uma vantagem de 3/0, e quando todo mundo talvez desse como certa uma virada nada incrível, dado o histórico autodestrutivo do escocês, Andy foi lá, deu quatro saques e fechou o game em pouco mais de um minuto. Soa como desdém agora, mas depois daquilo os games restantes me pareceram meramente protocolares – Andy seria de fato campeão de um Grand Slam.
E o bem que Andy fez ao mundo talvez seja provar que não é preciso parecer um androide pra ser campeão neste esporte. A passividade, os novecentos e quarenta e dois vírgula quatorze break points não aproveitados por hesitação, a instabilidade mental: todas as razões já apontadas pra explicar seu fracasso apareceram durante a campanha vitoriosa. Era uma questão de achar a medida, uma questão de ajuste, não de transformação radical.
É claro, não é preciso torcer pelo Andy pra saber de seu potencial técnico, do slice, do dropshot, da variação de velocidade dos golpes, das passadas e do etc.: basta assisti-lo jogar. Mas só quem torce por ele sabe apreciar o potencial trágico da figura. Na era do “melhor da história”, Mori peca por sentir o peso do mundo – ou do Reino Unido – nas costas a cada forehand. Num esporte que exige, por estranho que seja, a força mental de uma máquina, ele paga por encenar um Hamlet a cada erro não-forçado. Nos tempos da comunicação, do showman (ainda prefiro entretainer) , é acusado de não sorrir quando deveria. A antipatia com que muitos o desmerecem, aliás, nasce justamente dessa dificuldade de ser como as pessoas esperam que ele seja. Andy Murray não tem um manual de instruções muito óbvio nem é figura lá muito rentável – ao contrário daquele moicano, Andy, sim, é apenas um garoto brincando com sua raquete. Batalhando no meio de gente que tem sido campeã em tudo, num mundo em que somos obrigados a ser campeões em tudo, Andy insiste em ser um personagem estranho, instável, literário demais, até no modo de viver seu merecido happy end. Mas, pasmem, gente assim, vez ou outra, também tem direito ao paraíso.

*Ivan Kano acompanha tênis há muitos anos, apesar de ser corintiano, e estava devendo este slicer para nosso humilde blog. Dono de texto impecável, só lhe falta um grand slam... quem sabe aqui!

Nenhum comentário:

Postar um comentário