Ivan Kano*
Não, eu não vi o início
do jogo, comecei a assistir quando Djokovic iniciava a reação a partir do terceiro
set. Sim, terminado o quarto set, achei mesmo que eu é que tinha zicado parada, que a derrota era questão de tempo. Desculpem,
mas, depois de tanto tempo vendo Andy Murray cumprir sua via crucis em busca de um Slam redentor, confesso que comecei a
desenvolver um certo botafoguismo, aquela mistura descabida de sebastianismo e
filosofia estoica que transforma a superstição em lei da física, a derrota em
sina – em suma, a fatalidade em destino. A meu favor havia dois dados: fazia
bem pensar que Andy poderia finalmente vencer na quinta tentativa, tal como
Lendl, seu treinador; era muito simbólico que Mori exorcizasse o fantasma na
mesma Arthur Ashe onde, quatro anos antes, disputou sua primeira final de Grand
Slam, contra o Federer. O ser humano, sabemos, é uma máquina de ver sentido
onde não tem e, no fim das contas, pra bom botafoguense, meia crendice basta.
O fato é que resolvi
preservar a saúde e não assisti ao início do jogo. Se tivesse sorte, veria o
final, um quinto set com dois jogadores se arrastando em quadra, aquele mezzo clássico
mezzo clichê do tênis que só não é mais desesperador porque em Nova Iorque vamos,
no máximo, até o décimo-terceiro game. Liguei o streaming, dividido entre o
desejo improvável de ver o britânico encerrar o drama de uma vez e a certeza de
que o sérvio, de alguma maneira, reagiria. Era previsível, afinal. Um pouco
pelo que a gente conhece do Murray (tá, bastante, sim), mas muito pelo que já
se viu Nole produzir, especialmente quando liga o modo O último dragão branco de jogo: consigo imaginá-lo, de olhos
vendados pelo Marian Vajda, treinando aquele maldito forehand na linha que o
colocou na final dos dois últimos US Open. Por isso, mais do que ter vencido os
dois primeiros sets – indo além do que jamais havia feito em uma final desse
nível até então –, e mais até do que ter iniciado o quinto set com uma quebra,
foi no sexto game da última parcial que Andy mandou um sonoro hoje não! pro sujeito postado do outro
lado da rede. Liderando por 3/2 e saque, mas pressionado por ter perdido uma
vantagem de 3/0, e quando todo mundo talvez desse como certa uma virada nada
incrível, dado o histórico autodestrutivo do escocês, Andy foi lá, deu quatro
saques e fechou o game em pouco mais de um minuto. Soa como desdém agora, mas
depois daquilo os games restantes me pareceram meramente protocolares – Andy
seria de fato campeão de um Grand Slam.
E o bem que Andy fez ao
mundo talvez seja provar que não é preciso parecer um androide pra ser campeão
neste esporte. A passividade, os novecentos e quarenta e dois vírgula quatorze
break points não aproveitados por hesitação, a instabilidade mental: todas as
razões já apontadas pra explicar seu fracasso apareceram durante a campanha
vitoriosa. Era uma questão de achar a medida, uma questão de ajuste, não de transformação
radical.
É claro, não é preciso
torcer pelo Andy pra saber de seu potencial técnico, do slice, do dropshot, da
variação de velocidade dos golpes, das passadas e do etc.: basta assisti-lo jogar.
Mas só quem torce por ele sabe apreciar o potencial trágico da figura. Na era do “melhor da história”, Mori peca por
sentir o peso do mundo – ou do Reino Unido – nas costas a cada forehand. Num
esporte que exige, por estranho que seja, a força mental de uma máquina, ele
paga por encenar um Hamlet a cada
erro não-forçado. Nos tempos da comunicação, do showman (ainda prefiro entretainer) , é acusado de não
sorrir quando deveria. A antipatia com que muitos o desmerecem, aliás, nasce
justamente dessa dificuldade de ser como as pessoas esperam que ele seja. Andy
Murray não tem um manual de instruções muito óbvio nem é figura lá muito
rentável – ao contrário daquele moicano, Andy, sim, é apenas um garoto
brincando com sua raquete. Batalhando no meio de gente que tem sido campeã em
tudo, num mundo em que somos obrigados a ser campeões em tudo, Andy insiste em ser
um personagem estranho, instável, literário demais, até no modo de viver seu merecido happy end. Mas, pasmem, gente
assim, vez ou outra, também tem direito ao paraíso.
*Ivan Kano acompanha tênis há muitos anos, apesar de ser corintiano, e estava devendo este slicer para nosso humilde blog. Dono de texto impecável, só lhe falta um grand slam... quem sabe aqui!
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